23 de Novembro 2013
Amanhã, se puder, tomarei um atalho desconhecido, para desembocar no
nada — se ainda houver atalhos desconhecidos
Se não, em algum dos conhecidos se abrirá uma clareira que, de tão
inundada de luz, me abrirá igualmente as portas do nada absoluto.
12 de Dezembro 2013
Um dia pus‐me a pensar a
expressão alemã Freitod (morte livre) e as diferenças que contém por
comparação com a de «suicídio». E escrevia: «... estou, ainda e sempre, do lado
da vida — a única realidade que conhecemos, no sentido de que passamos por ela,
e ela passa por nós. Não ao nosso lado, mas pelo nosso corpo. E é por isso que
ela só pode ser plena se incorporar a morte‐em‐liberdade».
«Enquanto necessidade, a morte é o reverso exacto e inevitável do
nascimento. Como possibilidade livre, ela corresponde a um gesto: o de cortar o
fio (o de poder cortá‐lo) sem deixar esse gesto e essa decisão cair nas mãos de uma qualquer
Parca, antiga ou moderna — o tempo, a doença, o azar, a técnica...».
«Penso, sem sobressaltos, que uma das mais serenas meditações que se
podem fazer é a meditação sobre a morte... A morte como alguma coisa que nos
podemos dar ([se] donner la mort, como diz um título de Derrida). O
Zaratustra de Nietzsche sabe disso: não há morte dada sem vida escolhida.
Zaratustra, que sabe o que é viver, lança o apelo: “Morre no momento certo!”
Mas, céptico, pergunta também (pergunta actualíssima, num tempo que desaprendeu
a morte, esta de que falo): “Quem nunca soube viver no momento certo, como há‐de ele morrer no momento certo?” É preciso aprender
a morrer, longe da morte‐esgar, à
espreita como um ladrão».
A consciência que olha a morte nos olhos é um outro nome da liberdade.
20 de Dezembro 2013
A consciência livre da morte, o saber que ela está sempre à mão,
inexorável e disponível, é estímulo para a acção, incentivo a viver, fundamento
de um sereno saber de realidades que quase sempre se tende a recalcar. Mas é
preciso fazer regressar o recalcado, dialogar com o fantasma, conhecê‐lo para o dominar.
Estar pronto para a despedida. Para que o mundo possa, por seu lado,
preparar‐se para o luto,
ou o esquecimento. A despedida pode então ser uma festa da vontade, o luto um
ritual de tristeza serena. A tristeza do luto reconcilia — com a vida e com a
morte. Llansol, num caderno manuscrito: «Que milagre é escrever, apontar,
desenhar, morrer de súbito, quando a frase se suspende...». Como um hiato na
respiração, que recomeçará noutro lugar. Sem mais.
21 de Dezembro 2013
Um homem livre afirma‐se pela sua resposta à vida que o chama. Respondendo à vida, e não
dissociando dela a morte livre, age no sentido da liberdade plena, sem resto —
e sem réstia de arrependimento ou culpa.
A relação com a morte é de luta. Luta pelo prazer de sentir supremacia
sobre ela, de saber exactamente qual a medida do (nosso) tempo. «O tempo é um
simples modo de pensar» (Spinoza).
O tempo — essa substância estranha e implacável que sustenta a tirania
de um mundo que absorve toda a energia mental. Mas deixa sempre aberta uma
nesga através da qual a imaginação vê e recria, dia a dia, hora a hora. Ampliam‐se os sentidos de ver na ausência. Até ao limite em
que damos conta de que a Grande Ausente está sempre aí. Ela é, no mundo, a
Grande Desconhecida que nos acompanha. E a quem podemos trocar as voltas.
16 de Março de 2014
Escrevo neste diário à transparência do que não vejo ainda, e talvez
nunca vislumbre: na ignorância do tempo que nos cabe sobre esta Terra, saber
mais do lugar para onde irei, e conhecer a mão (desconhecida) que me conduzirá.
Assim, seria mais seguro o caminho, e menos penosa a espera.
A mão é, naturalmente, o outro nome do indizível. Mas (lembra
Llansol) «o indizível diz‐se, é apenas um
continente ao lado», «um azul do simultâneo que aspira a não continuar obscuro»
(Caderno 1.66, pp. 124‐125).
Busco então dizer o indizível do não‐ser _____ que é tão-somente esse outro continente, a que fechamos os
olhos. Insensíveis ao que pode ser uma festa, diferente de todas as que
conhecemos. Uma dança leve e livre ______
23 de Novembro 2014
Este é o diário do dia seguinte ao da minha morte, aquele em que se
saberá se ela foi livre. Aquele em que ficarei a saber tudo sobre ela.
O dia seguinte é o único em que só haverá certezas.